Em um cenário onde os debates feministas ganham cada vez mais complexidade e diversidade de vozes, revisitar os fundamentos sobre os quais esses discursos foram construídos torna-se uma tarefa urgente.
Foi com esse espírito crítico e inquieto que me deparei com o artigo da socióloga e professora nigeriana Oyèrónké Oyěwùmí, cujo olhar afiado para as limitações do feminismo eurocêntrico me levou a escolhê-lo como ponto de partida para esta resenha.
O texto, intitulado “Conceituando o gênero: os fundamentos eurocêntricos dos conceitos feministas e o desafio das epistemologias africanas”, integra a coletânea Pensamento Feminista Hoje: Perspectivas Decoloniais, organizada por Heloisa Buarque de Hollanda e publicada pela Editora Bazar do Tempo em 2020.
A obra reúne mais de 22 pesquisadoras que, a partir de perspectivas latino-americanas e africanas, dos feminismos negros e ecofeminismos, questionam os conceitos ocidentais de gênero e propõem novas formas de pensar o mundo.
Oyèrónké Oyěwùmí é reconhecida por suas contribuições fundamentais aos estudos de gênero e feminismo, especialmente por confrontar a centralidade eurocêntrica desses discursos. Em sua trajetória, ela explora as intersecções entre gênero, cultura e colonialismo, propondo uma abordagem que valorize as epistemologias africanas.
Ao longo do artigo, sua análise se ancora na cultura iorubá para questionar os alicerces do pensamento feminista ocidental — especialmente os conceitos de gênero que, segundo ela, ignoram ou distorcem outras realidades culturais.
Com apoio de outras pesquisadoras africanas, Oyěwùmí confronta a naturalização do modelo de família nuclear ocidental como base para as teorias feministas e defende a ampliação das bases conceituais para incluir saberes oriundos de outros mundos.
A estrutura do texto é dividida em quatro partes. Na primeira, que leva o próprio título do artigo, a autora apresenta seus objetivos e posiciona seu olhar crítico sobre os debates feministas. Em seguida, no segmento “Gênero e a política do conhecimento feminista”, ela problematiza a ideia de uma universalidade no conceito de mulher, mostrando como os movimentos feministas se ancoram em uma noção de gênero derivada da família nuclear europeia. A terceira parte, “A família Iorubá não generalizada”, ilumina as formas de organização familiar iorubás, que não operam com os mesmos princípios de gênero que moldam as estruturas familiares do ocidente. Por fim, em “Desafios de conceituação africanas”, Oyěwùmí mostra como o entendimento ocidental frequentemente falha em reconhecer realidades que escapam ao seu enquadramento.
Desde o início, Oyěwùmí aponta a modernidade como o processo histórico que consolidou o privilégio do masculino, moldando um padrão hegemônico de conhecimento a partir da expansão capitalista, do colonialismo e da industrialização europeia. A legitimação do homem europeu como centro do saber e da razão contribuiu para consolidar uma estrutura de mundo onde gênero, poder e conhecimento se entrelaçam de forma desigual.
Para compreender a condição humana — especialmente nas diversas realidades africanas — é preciso, segundo ela, entender esse pano de fundo histórico e epistemológico. E é a partir desse contexto que Oyěwùmí lança sua crítica aos conceitos de gênero.
Se o feminismo reivindica o gênero como categoria de luta, ele precisa, antes de tudo, questionar sua própria construção. Para a autora, “mulher” não é uma identidade universal, e sim uma construção social atravessada por raça, classe e cultura. Quando o conceito é formatado dentro da lógica eurocêntrica, ele tende a excluir experiências que não se encaixam no modelo de feminilidade branco-ocidental.
O principal objetivo de Oyěwùmí é, portanto, acrescentar uma dimensão africana às críticas ao conceito de gênero. Para isso, ela revisita os fundamentos dos estudos feministas e mostra como eles estão calcados na noção de família nuclear — uma estrutura “generificada por excelência”, composta por um homem provedor, uma mulher submissa dedicada ao lar, e seus filhos. Nessa configuração, o gênero é apresentado como natural e inevitável. Assim, o feminismo branco, preso a esse modelo, não dá conta das complexidades que envolvem raça e classe.
As implicações dessa estrutura vão além da família. O entendimento de sexualidade, por exemplo, também é moldado dentro dessa concepção. No feminismo branco, a mãe é automaticamente associada à figura do pai. Uma mulher é, antes de tudo, “esposa”. Sua identidade está institucionalmente subordinada ao casamento, e isso acaba por delimitar seus papéis sociais dentro de uma estrutura binária e hierarquizada.
Como contraponto, Oyěwùmí apresenta a organização familiar iorubá, que não opera com base no gênero como critério primário. Em vez disso, a hierarquia social é determinada pela ancianidade — isto é, pela idade cronológica. Nomes, papéis e funções sociais podem ser atribuídos a homens e mulheres indistintamente, conforme a situação e o contexto. Ao contrário do gênero, que é fixo, a ancianidade é fluida. Os papéis são situacionais e mutáveis, permitindo uma organização familiar mais aberta e dinâmica.
Essa abordagem traz à tona o principal desafio dos estudos de gênero africanos: até que ponto é possível aplicar conceitos feministas ocidentais às realidades do continente africano? Oyěwùmí mostra como as epistemologias africanas são frequentemente distorcidas quando interpretadas a partir de categorias importadas. Cada exemplo apresentado no artigo é um convite a desestabilizar os universalismos do feminismo eurocentrado.
Ao final, a autora é enfática: qualquer análise da África deve partir da África. É preciso respeitar os contextos locais e construir saberes enraizados nas realidades culturais próprias — e não em moldes coloniais.
A provocação lançada por Oyěwùmí é urgente e necessária: como podemos falar em igualdade, emancipação e justiça se ainda não conseguimos escutar e valorizar outras formas de viver, pensar e resistir? Incorporar epistemologias africanas não é apenas um gesto de inclusão — é um passo vital para reconfigurar os estudos de gênero num horizonte verdadeiramente global, onde muitas vozes falem, com legitimidade, sobre seus próprios mundos.